sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Monólogo de mim

Basta uma única sentença para tirar-me dos eixos, como se eixos eu tivera, mas uma simples sentença basta para virar-me do avesso, como se (eu) nunca do avesso eu estivera. Mas é com uma simples e única sentença que se condena a morte, como se sempre condenada a vida eu quisera.

Quem é o juiz que dita minha sorte? Sou eu quem crio os personagens da minha história, e se a sentença, tão simples e estúpida sentença, tem o poder de à morte me levar, é porque poderes eu atribuo a quem lhe profere. Quando eu vivia meu ser sozinho no mundo e me sentia plena, livre e feliz, tal julgamento ser-me-ia impossível, pois lá naquele então era minha vida um monólogo e o eu narrador coincidia plenamente com o eu - lírico. Agora que já tudo começa a confundir-se e emaranhar-se, quando os olhos enxergam embaçados, os poderes são divididos e o eu que escreve já não mais domina os personagens: eles ganham vida própria e saltam-me por sobre o ego, capazes de esmagar-me com uma só sentença; arrancam-me as palavras dos dedos e escrevem minha própria história.

Do poder das palavras se trata, ou do poder da interpretação, que no fundo também é poder das palavras: pois pode ser que as palavras não tenham sido proferidas com tal intenção de condena, mas se organizaram assim na mente do ouvinte e produziram esse efeito. Pouco importa tanta divagação lingüística se no fundo, de fato, já fui condenada e estou agora totalmente morta.

Telefonei para minhas amigas pensando em falar da tal sentença. Mas quando me imaginei contando o ocorrido tudo perdeu o sentido, e pareceu-me tão tolo que não tive coragem de importunar os outros com tanta bobagem. Por isso preferi comprar três cervejas e sentar na frente do Word pra escrever. Aqui, em frente à vastidão do branco eletrônico, existo apenas eu com meus dedos, e diante dos meus dedos e da vastidão não necessito sentir de mim vergonha nem penas.

Meu plano era sair do trabalho e comprar-lhe uma Felicidade Clandestina, palavras de presente ao ser que agora me divide. Fiquei tão irritada e tão condenadamente morta que não quis comprar livro nenhum, resolvi comprar um curto tecido de estampas de flores, cores da primavera para vestir-me e lembrar-me como é bom ser sozinha no mundo, para adornar-me assim que saia o sol e esquente, pois quando sair o sol o ser sozinho seguramente virá a tona, e já não terei mais tantas confusões gélidas em minha mente perturbada.

O que mais me intriga é como uma tão simples e idiota sentença pode fazer-me mudar de uma hora para outra, com a mesma velocidade que pisco os olhos. Num minuto estava completamente apaixonada, pensava em ir a São Paulo, pensava em ir a qualquer lugar onde com ele pudesse compartilhar minha existência; no outro estava em fúria e desejava vingança: pensei imediatamente em ir ao samba e comer a primeira carne que me aparecesse. Quis o destino que eu terminasse em uma loja de magazine gastando em vestido o dinheiro que iria gastar no livro, ou depois de proferida a sentença, em cerveja e táxi. Sorte de alguém que não é verão. Porque se fosse verão o samba me veria agora bela, irada e florida, e algum outro homem me veria morta sem nenhuma pétala. Eu teria sim um novo vestido já gasto, suado e manchado de sangue. E, no entanto, não me sentiria vingada, porque por mais que me vingue, nunca sinto que é o suficiente, que me satisfaz. O desejo de vingança é compulsivo, sempre deixa um espaço para mais desejo e mais vingança, espaço que nunca é cheio.

Então a solução não é vingar-se? E como, se vingar-se me acalenta? Não me satisfaz plenamente porque sempre desejo mais vingança, mas me acalenta sim. Hoje eu me vinguei, porque é incrível que quando se tem paciência para esperar a vingança apresenta a ideal situação para sua execução: pude repetir a mesma sentença a quem me condenou, em igual situação. Entretanto ele não se sentiu condenado, talvez seja por isso que eu me sinta agora tão, mas tão furiosa. Talvez porque seja realmente estúpido, eu até sei que é estúpido, foi uma situação estúpida e eu deveria relevar; mas tenho medo de começar a relevar e terminar relevando eu mesma, minha opinião, meu sentimento, meu ser no mundo. Por isso hoje eu não quero relevar e não vou relevar nada, talvez amanhã ou daqui a cinco minutos eu mude de opinião, mas no agora de hoje não: quero falar sobre a minha estupidez, que seja, mas quero falar que uma simples sentença tem sim o poder de condenar-me a mais que a morte, mas a mais completa desilusão.

Eu tenho necessidade humana de falar, por isso escrevo. Escrever às vezes é o registro solitário da conversa que se tem consigo mesmo. Às vezes é pura masturbação; outras, puro arranjo sonoro ou semântico. Mas agora é apenas confissão. Confesso então que já não sei mais se quero compartir a minha vida com outra pessoa, é a essa conclusão drástica que eu chego, esse é o resultado empírico da teoria do caos: o bater de asas da borboleta foi aquela sentença, o resultado é um total questionamento de paradigma da construção do meu ser no mundo. Quero ser de novo sozinha no mundo, mas será? Será possível ser o ser sozinho e ser também o ser no outro? Será possível permitir ao outro que pertença a nossa construção e ainda assim manter-se a parte e relevar seus julgamentos, suas sentenças?

Eu ainda tenho uma esperança mórbida e moribunda que me sussurra nos ouvidos: tenta que pode ser que funcione, pode ser que você consiga misturar todos os pontos de interrogação, esticá-los, e fazer uma exclamação linda no fim. Uma esperança tétrica que sempre me atiça com a idéia de surpresa, porque sabe que meu combustível é o inesperado. Mas ando com tantas saudades de mim mesma, e com tão pouco tempo para desfrutar-me, que não sei se quero gastar esse tempo desfrutando-me com outra pessoa. E não é uma pessoa qualquer, é uma pessoa que amo muito; mas entre o amor ao outro e o amor a mim, se eu tiver que escolher, escolho e escolherei sempre o amor a mim. Talvez eu ainda não saiba amar, eu não sei, porque em mim eu nunca sou juiz, sou apenas ouvidos e estômago. Juiz em mim é sempre o outro. Mas eu sei que das vezes que fui mais amor ao amor que a mim, quem terminou cega no escuro do rancor e da mágoa fui eu, então amar o amor com sentenças de morte eu não amo mais não. Se é para viver um amor que seja sem indelicadezas, sem condenar-me todas as interpretações à estupidez e ao ridículo. Quero amar o amor que respeita minhas idiotices e que não as julguem, mas as compreendam, mesmo ridículas. Afinal, não é por ser ridículo e idiota que não se deve respeito, se fosse assim pelo menos metade da população mundial estaria agora mais morta que eu.

Sei que estou aqui, de novo, no mesmo lugar e com as mesmas angústias. Espero que alguém se conecte, espero que me responda sem perguntar, espero que me pergunte sem eu indicar a dúvida. Ah, o grande problema das mulheres: esperar que os homens adivinhem o que elas sentem, que perguntem o que elas já antes querem responder, que aticem o que elas querem falar. Cansa ter que indicar o caminho todo o tempo. Mas sei que se não for assim, é com o desejo de vingança mal vingada que ficarei na garganta, e meu estômago não suporta mais engolir nada, absolutamente nada.

Eu sei que todo esse drama que faço por tão pouca coisa é-me muito útil e necessário, pois é assim que rompo barreiras e delimito meu território, imponho-me um modo de sobrevivência sem o qual eu só caminho para o suicídio. Então agora, se eu resolver ir para São Paulo e é provável que eu vá pois nunca resisto às tentações da minha vontade, eu lhe direi como serão as coisas. O que me incomoda com tal sentença é que eu sempre estou grudada no computador esperando que ele me contacte, eu sempre estou a espera. Mas também tenho que entender que não é culpa sua nem posso lhe impor meu comportamento e esperar que o dele seja igual.

Chego a um lugar que não sei mais para onde seguir. Se continuo caminhando é em círculos.

Sei que ainda preservo o vestido de primavera intacto, para que tu me desflores as pétalas coloridas, corazón. Tenho todos os botões guardados, se sim gastos, mas novos, da nova esperança de sol raiar todo dia.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Dos Monges o súbito ( prólogo)

Os monges perduram na primavera
Eles e toda sua compaixão para com a decadência
Pois possuem a sabia gentileza da paciência
Pela certeza de que nem tudo que se dá
Se dará por conivência.
Assim sobrevivem séculos e séculos todos os homens
Mais do subterfúgio de sua certeza de retirante
Do que do sentimento de salvador da pátria

sábado, 9 de outubro de 2010

O monge

Um monge franciscano caminhava entre o mendigo, ele dormia, um cobertor embaixo do viaduto. Uma mulher carregava um pão na mão, como um tijolo. O ônibus parou de repente, como se não estivesse programado pelo sinal vermelho. O monge e o mendigo se misturaram de tal forma que não sabia mais quem era quem, e pensei quem seria o grande vilão a despertar o sono sagrado dos mortos. E a mulher com o pão tijolo pesava sobre tudo, branca, entre as vestes marrons e os cobertores que se engalfinhavam.

Eis que surge uma cabeça e o ônibus arranca. O sinal não é bem programado. Eu fiquei com a esperança da imaginação em minha cabeça, essa mesma que me acompanha há tantos anos. E pensei que seria bom um monge franciscano, porque ele de certa maneira tentaria semear algo de paz entre nós do viaduto. Algo de humano.

Fazei com que eu procure mais entre os meus encontrar algo de mim. Fazei com que sua dor se misture com a minha. Fazei com que caminhe entre os sujos e seja da mesma forma suja para assim compreender sua sujeira. Fazei com que eu ame como quem ama de um olhar de um sinal, de uma parada de ônibus, no mais que de repente. Fazei com que esse ser que olha entenda por que eu caminho descalço entre os ratos e baratas e lama das ruas, e que de mim não sinta nojo. Fazei com que na mente dessa pessoa exista uma total quebra de paradigma para entender o quanto eu sou bonito. Fazei com que o outro possa compreender a doação que há em mim.

Assim deveria ser a oração dos franciscanos.

E depois eu segui no ônibus e o franciscano já não mais existe entre os saltos do meu scarpin negro negríssimo.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

É para ti meu Carnaval

Meu ser sozinho no mundo encontrou um obstáculo que não é de matéria pedra, mas sim de flor. Caminhava eu em uma espécie de auto-adoração e descoberta do maravilhoso mundo fantástico que há em mim, depois de infinitos anos moleculares submersa nas profundezas da angústia e do tormento, e, quando enfim emergi, enrosquei-me em serpentinas, paetês e purpurinas, e cai perdidamente apaixonada por um arlequim.

Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim e funcionou. Carmen é realmente um ser fantástico, até meu cocar te fiz colocar. E foste o mais lindo de todo o carnaval, tu, quando te vi embrenhado em flores, foste meu amor à primeira vista, estrela Dalva no céu despontou e iluminou, minha lua ficou tonta com tamanho esplendor. Te disse: me espera? E tu me esperaste sorrindo, meu pastor que sabe da ovelha negra desgarrada. Não usei máscara negra porque tu me foste sempre claro, e na visão dos meus sonhos tiveste a ressurreição no carnaval, e me fizeste colombina sonhar. E te mostrei que tua sina, arlequim, era adorar a colombina dos carnavais que não voltam mais.

Abri alas e passei com meu bloco pelo teu, fizemos um só cordão colorido, demos as mãos e bailamos pela Lapa, pelas ladeiras de nossa Santa Tereza, pelo Aterro do Flamengo e chegamos até o Leblon. Somos filhos da Chiquita Bacana, abençoados por um deus pagão, temos sorte, muita sorte; somos safados, sacanas, e combinamos perfeitamente no samba, no suor e na cerveja, nessa ilusão esplêndida que se chama Carnaval.

Os encantos mil da Cidade Maravilhosa envolveram-te e nos inebriaram. Apreciaste nosso canto, nosso berço, nosso riso; descobriste a matéria alegre de que estamos feito. Tens o espírito e esse espírito azul anil te salta, e foi bailando no ar que nossas almas se encontraram.

Mais de mil palhaços no salão e tu me reluzistes, arlequim. Espero ver-te outra vez em menos de um ano, sem máscara negra escondendo teu rosto, só pra matar a saudade, essa que mata a gente. Sem que chores pelo amor da colombina porque meu amor será teu, não posso dizer pra sempre, mas por enquanto, o que já é muita coisa tendo em vista que meus segundos duram milhões de anos-luz. E te beijarei com muitos risos e alegria porque para nós será sempre Carnaval.

Flutuamos ao som de todas as marchinhas, eu te traduzia todas as letras e tu aprendias as nossas por si, “eu mato quem roubou minha cueca pra fazer pano de prato”, me cantavas, e te encantava saber e sentir tudo sobre meu Brasil, meu país, meu tato, meu ser, nosso Carnaval. Há um dito aqui que não te contei: paixão de Carnaval não dura até o Natal, mas eu nem sei se me importo que dure, porque já vivi uma eternidade em tua paixão serpentina. “A vida dura só um dia, Luzia, e não se leva nada desse mundo”. E tu bem sabes que desse mundo leva-se apenas essa eternidade que há em nós.

Nossos confetes eram como pétalas de amor bailando pelo ar, eu te ensinei o ser irreverente carioquês, mesmo que não fosse, porque sempre te disse que era da terra de Araribóia, Nikity City, niteroiense papa-goiaba. Mas sei desse espírito Rio, rio-me de amores, e estamos sempre rindo porque nossa beleza sobrepassa qualquer nuvem e qualquer mal-poente, somos sempre brisa, e mar, confete, rio, serpentina, alegria.

Sassaricaste comigo em todas as cordas bambas e aprendeste que sem sassaricar essa vida é mesmo um nó. Nosso bloco não foi do eu sozinho, mas do eu juntinho, meu ser sozinho no mundo despediu-se por um momento e colou-te a ti, meu precioso, meu maravilhoso outro ser sozinho no mundo. E aprendeste assim, com o Carnaval, a amar-me e a a-mar-me no mais bonito de mim, na minha catarse, na minha epifania, na minha santidade e religião carnavalística de confete e purpurina.

Aprendeste que minha galera dos verdes mares não teme o tufão, porque somos verdes, e amarelos e azuis e brancos, porque temos ressacas de ondas, de mares e cervejas, porque somos da terra das palmeiras onde canta o sabiá, porque somos desse brasileirismo que tanto te encanta. E te vi no mais pleno de teu ser, e fui eu também mais plena, porque quando há confetes todo mundo se torna mais colorido, mais feliz, mais alegre, mais brasileiro, mais completo.

Passamos a mão no saca-rolha e não deixamos nenhuma garrafa cheia, afogamo-nos nas águas de nossos amores, de nossas dores, e misturamos nossa cachaça com tua tequila, bebemos até a última gota de nosso ser; e não nos faltou nem manteiga, nem arroz, nem feijão, nem pão, e nem tampouco amor nos faltou, porque quisemos amor.

Com a turma do funil aprendeste a não dormir no ponto e a não ficar tonto, eu fiquei tonta tantas vezes e dormi, e tu me cuidaste em teus ombros bonitos, esse desenho incrível que só pode ser de deus. Sem compromisso me quiseste, e é assim que eu te quero, sem compromisso e livre, como nós em um dia momesco pudemos ser.

Levanto a bandeira branca porque não suporto mais ter essa saudade que me invade, eu imploro paz. Paz e teus beijos, teus carinhos, amor e paz para que o bloco do eu sozinho forme de novo um imenso cordão.

Quero contigo levar a vida a cantar, de noite embalar teus sonhos e de manhã ir te acordar. Quero contigo cantar pelos espaços afora, ir semeando cantigas e dando alegria a quem chora. Quero cantar para te ver mais contente, pois a penúria dos outros é a alegria da gente. Canto e sou feliz assim, agora peço que cantes um pouquinho para mim.

E ainda há quem diga que eu não sei de nada, que eu não sou de nada e não peço desculpas. Mas sei que tu pões fé em mim, e tua fé vale mais que todas porque és guerreiro. Sei que não necessito pedir-te desculpas, porque a única culpa que tenho é a de ter me apaixonado doidamente por ti, e dessa loucura sei que não queres a cura, só o calor. Mas o que eu quero, eu quero mesmo é botar meu bloco na rua junto com o teu, gingar-te e botar-te pra gemer. E que gemas até que me transformes em ovo, que me faça perder a boca, porque eu não tenho medo quando o pau quebrar. Eu por mim queria isso e aquilo. E é disso que eu preciso e não é nada disso, eu quero é todo mundo nesse Carnaval. Eu quero é botar meu bloco na rua, botar pra gingar junto com o teu.

Agora me restas tu, meu confete, “pedacinho colorido de saudade, ai, ai, ai, ai, ao te ver na fantasia que usei, confete, confesso que chorei. Chorei porque lembrei o carnaval que passou, aquele “arlequim” que comigo brincou, ai, ai, confete, saudade, amor que se acabou.” E eu não quero que se acabe, e estou eu entre a razão e a esperança do amor, no meio do retorno de Saturno com a plena consciência de que a felicidade é realmente clandestina.

“Angústia, solidão, um triste adeus em cada mão, lá vai meu bloco, vai, só desse jeito é que ele sai. À frente sigo eu, levo o estandarte de um amor que se perdeu num Carnaval. Por isso quando eu passar batam palmas pra mim, aplaudam quem sorriu trazendo lágrimas no olhar, merece uma homenagem quem tem forças pra cantar.”

Mas a gente tem que ver como é bonita a vida, ver a esperança ainda, o novo céu se abrindo e o sol iluminado por onde nós vamos indo. E que nos ilumine o sol de tua terra Maia de milhos que tanto amo, que nos ilumine meu céu de braços abertos, que nos ilumine tudo de extraordinário que há no mundo.

E quem sabe, sabe, conhece bem como é gostoso gostar de alguém. E me deixaste gostar de ti porque sabias já que boêmio também tem querer. Bailaste com minha cigana e quase que te trouxe um malandro para me acompanhar, porque teu ser já é malandro, malandro de nome santo Jorge.

Ogum também te chamam, e depois que já fingiam aqui que não era mais Carnaval, fomos ao samba e cantamos teu ponto, Santo Jorge, não porque és beatificado mas porque estás tão próximo dos céus. E sabes voar e me levar até as extremas alturas.

Dói-me uma dor estranha que não é dor, é dor que só a língua portuguesa entende: é saudade. Saudade mata a gente, saudade só o português sente. E eu, tão brasileira, tão Rio de Janeiro que te sorri, saudade eu sei que só eu posso sentir. Tu me extrañas, eu tenho saudades de ti. E por isso, em vez de confetes, agora espalho algumas lágrimas de purpurina, porque ainda guardo no canto dos olhos aquele pequenino grão de areia prateada que roubei de ti.

Quase ateei fogo ao computador, e isso geralmente acontece ou quando eu estou bêbada- o que não é o caso, eu juro – ou quando eu estou em puro êxtase, trêmula, e não consigo agarrar mais nada. É este o caso. Tinha necessidade enorme de embriagar-me e escrever-te. Escrevo e tento embriagar-me, na realidade tento as duas coisas porque tudo me é bastante difícil agora. Se eu te contasse que entre todas essas coisas ainda converso com minha mãe, escuto e explico marchinhas e presto atenção em dois anjos tortos que brincam de luta na sala, tu não me crerias.

E se a canoa não virar eu chego lá onde tu estás, mi corazón.

Hoje penso no exato dia que tem o mesmo nome, o dia da semana passada, e penso que ainda estava enroscada em teus braços, enlouquecida em teus beijos; que te podia admirar o corpo nu, perfeito, meu deus Greco - mexicano; que queria desenhar-te em puro carvão, sua luz, suas sombras, seus contornos, para guardar-te para sempre na memória. Penso como as horas são injustas, horas inglórias que vivo aqui, agora, a beber e escrever e tentar viver-te de novo.

Estou completamente arruinada, eu, logo eu, que já havia começado o treinamento do meu ser sozinho no mundo, fui-me eu me apaixonar por ti, e a repetir tudo outra vez. Se já sei tudo o que vou sentir, se já vivi essa estranheza, por que tenho eu necessidade humana de querer-te? És para mim essa necessidade de escrever, és meu Carnaval, és-me humano e sobrenatural. És-me a total beleza do ser, meu espelho, meu narciso, meu pierrot; e eu sou-te toda confete, serpentina, purpurina, paetê e colombina. Descubro que a vida é infinitamente bela e que cada ínfimo segundo vale uma eternidade. Agradezco a ti, mi guapísimo, porque contigo descobri quase toda beleza que há em mim. Na pensão do meu coração sempre haverá um enorme quarto para que possas de vez em quando pousar aqui.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Falar de amor em Itaipu

A lua era um abraço. Ela se banhava no quintal como se a água fosse suja: está suja, ela disse, mas era apenas sombra. Entrou água no meu nariz. Entrou muito mais que água em seu nariz. Eu bebo o vazio do mundo. Todos são incríveis, todos. Nada sabem eles do que é pensar que se vai ficar cego. Hoje eu quase fiquei cega, quase. Hoje eu quase fiquei cega porque meus olhos estavam muito abertos. Então tive que beber para poder fechá-los um pouco. E foi quando descobri o fascínio nos olhos do menino que catava tatuí. Tatuí. Tatuí é o som que aqueles olhos faziam, mas o tatuí estava morto. Ele cavou uma piscina para encontrá-los, para que o mar pudesse entrar e mantê-los vivos. Ia atrás das bolhas do tatuí e descobriu um, morto, e não pode crer. Jogou-lhe água, observou-o: os olhos arregalados, vivos, estupefatos – sacudia-o como quem tenta ser algo milagroso. Viva, era como se ele dissesse: viva! Nada, o tatuí não viveu. Tatuí morto. Levantou-o na ponta dos dedos, equilibrista, e soprou-o ao mar.

Interessava-lhe catar tatuís vivos, sua coleção de espécies que se movem livres e de repente são aprisionadas num copo de plástico, com água suficiente apenas para respirar um pouco.
Ela, nua, que tomava banho na água suja, deve ter inalado o pó daquele tatuí morto quando sorveu a água turva de sombra, é claro. Agora dorme e venta, e há um pequeno ser ao seu lado que sonha em morrer e virar anjo. Ele disse: mãe, quero morrer. Por que? Quero morrer para virar logo anjo. Mal sabe ele que é uma espécie de anjo de asas tortas, um espírito zombador que sorri com seus dentes de peste e é divino ao mesmo tempo. Há um outro espírito em minha casa que carrega um par de olhos tristes azuis e é bondade pura. É a própria personificação do verbo doar. Eles são anjos e não sabem, porque são tortos. Um quer morrer para então tornar-se, outro tem fascínio pela morte mas odeia a idéia que o seu tão próximo morra. Aquela outra que fechou o verde das cortinas é também das divinas que aspiram pó de tatuí e bebem para deixar de ver o verde do mundo. Ainda bem que agora ela dorme, linda e nua, com aquele que quer morrer e tornar-se logo anjo ao seu lado.

Tudo é estranho, eu sei, e nessa estranheza reside a beleza do mundo. Alguns seres do universo esqueceram-se de sua divindade. Eu sou prepotente, logo estou mais próxima do inferno, o que não deixa de ser divino. Embora pense ser o Diabo menos opressor que Deus; se tantos reis perdem seus tronos, por que a onipotência não pode ser questionada? Há algo de demônio em mim. Escolho o aborto porque talvez eu nasça um anticristo. Quando eu sorrio de lado e torço o pescoço há algo de demônio em mim. Talvez eu dê a luz assim.

Há anos não encontrava um Tatuí. E, vendo aquele menino maltrapilho com olhos famintos, pude descobrir o segredo do mundo. Mas então eu quase fiquei cega, e porque me preocupei mais com a cegueira, e com a loucura, do que com o segredo do mundo, eu esqueci e não posso mais contar nada. Mas eu sei, por ínfimos segundos eu vi o perigoso segredo do mundo com os olhos dos cegos.

Faz muito calor e há muita luz, e a luz é o precipício da escuridão. Eu tive medo, mundo, tive, porque cheguei ali na beira do precipício. Pássaros com rabos de tesoura nos sobrevoavam, um ser com olhos doces escondia-se entre as serpentes e submergia no mar, outro descobria tatuís. Um moço dos magros esquálidos que comem todos os músculos carregava nos ombros uma enorme fêmea fértil, cheia de carnes, a própria deusa da cópula com as pernas apertando-lhe a cabeça. E jogavam: quem te afoga primeiro? Eu não sei como uns podem carregar tanto peso e outros serem tão leves, com tatuís na ponta dos dedos. Aí está o equilíbrio do mundo.

Isso tudo eu vi hoje, e te pergunto: como não ficar cego? Estou quase cega e bebo para apertar os olhos, e enxergar os verdes que se escondem nos cinzas das nuvens. Tenho tiques: amarro os cabelos no alto, dou nós, coço o nariz, fumo. Estou quase saindo de mim e não posso, quero chorar e não consigo. Uma lágrima me acalmaria. Mas não, eu decidi ser viva. E arregalo os olhos, tenho espasmos, bailo até aquele que me congela a dor para arrancar o último gole, raspar os glaciais. Não mais o mundo me transborda, eu me transbordo, eu sou o mundo inteiro. Não sei mais o que é meu corpo, não tenho mais estômago nem fígado. Já arranquei os tímpanos e hoje quase perdi os olhos. Tenho ainda pulmões, podres e cancerosos, e é lá onde te sinto. De repente respirei jazz e morri de saudades de ti, tu, mi porteño, donde carajo andarás que olvidaste todo lo increíble así, tan pronto? Tenho saudades de respirar-te, de sentir teus ossos, o teu cerne. O que ainda te mantém de pé?

Ainda bem, enfim, eu consegui chorar. Agora não vou mais transbordar até morrer.

Eu surto de tanto amor. Eu sei que tu não me aguentas mais, eu sei, é porque eu tenho uma espécie de amor parecida com a dos gatos. Veja os gatos: eles sobem em teu colo e te acariciam, depois te cravam as unhas para amaciar o lugar em que se deitam. Ninguém gosta, eu sei; mas eu, eu amo, amo quando os gatos me enfiam as unhas, dou-lhes minha própria cabeça para que me cravem todo o seu ser, e para mim isso é massagem pura. As pessoas se assustam, as pessoas se assustam quando acariciam um gato e de repente ele as morde. Mas entenda: isso pertence ao ser fantástico dos gatos, e o assustador de certa forma pertence ao fantástico. Eu sou um ser fabuloso como os gatos, que se move feito louca, mas não me tente entender: ame-me como eu amo os gatos que me cravam suas unhas e que me mordem.

Uma vez eu tinha um gato entre as pernas. Ele estendia o rosto para que eu lhe acariciasse o pescoço, me serpenteava, me ronronava. Era a animização do sol, com seus raios rajados, amarelos que interrompem brancas nuvens. Eu quis me levantar, quis deixá-lo, tirá-lo do conforto de minhas pernas. Ele se enfureceu e cravou suas unhas em meu maxilar, agarrou minha cabeça como quem fosse começar a devorar-me pelo cérebro – mas não fez mais nada, apenas cravou-me suas unhas no rosto e enfureceu-se. Soltei-o agarrando-o pelas patas e ele não me arranhou, ficaram-me apenas as marcas das pontas de suas unhas. Entenda os gatos e irás me entender: quando eu te cravar as unhas é porque quero que me segures as patas. E óbvio que me enfurecerei e te atacarei quando tentes expulsar-me de teu colo, por qualquer motivo que seja.

Restam-me apenas poucas horas para chorar o que perdi das minhas unhas entre tuas pernas, dos meus olhos que acendiam quando tu abrias os teus, de como nos fitávamos horas, como eu fito os gatos, horas que fitei-te para que viesses ao meu colo. Lembro-me da primeira vez que agarrei-te pelo pescoço e depois levei-te a New Orleans. Comprei-me uma serpente de plumas negras e nos envolvemos, espalhamos gotas de plumas pelos olhos que se nos passavam, dois gatos que enroscam os rabos. E pedi um Irish Coffe às três da tarde num jazz de esquina, e te filmei – você sorria com os olhos, dentes iluminados por mim que te dava tantas voltas. Embriagamo-nos e tu não te importaste. Quando foi que o inebriado do meu ser começou a te incomodar?

Levei-te do êxtase à tortura chinesa, tão típico de mim. E tenho poucas horas para trazer-te de volta. Porque amanhece e os anjos vão à escola. Minhas últimas canções, esqueceu? Eu sou o demônio com minhas serpentes que escorrem-me pelos ombros. Tenho agora só uns minutos para que me enxergues, não com os olhos últimos, os olhos do divino, mas com os primeiros, de terra, aqueles que me viram vestida de camareira, fumando, sentada sozinha, transbordando – aqueles olhos que transbordavam junto com os meus. Meus olhos de gato, os teus de leão. Quando éramos nós nada disso importava. E eu juro que tenho saudades do inferno em que vivemos. Eu prefiro. Eu prefiro ser inferno, mas eu gostaria que fosse o inferno dos gatos e do jazz.

Eu te amo de uma coisa louca e estranha, te amo da memória do amor. Memória, memória que eu nem sei mais o que é memória. Tento aniquilar minha memória e não consigo porque tu me permaneces. Sabes que talvez eu nunca tenha te amado como hoje quando estou sem ti? É o amor de um tesouro enterrado não se sabe onde, o desespero do pirata. Cavo todas as terras e só encontro tatuís mortos, nada de ti. Continuo a escavar e já amanheceu, é a hora dos anjos, eu tenho que fingir que vou dormir – sou demônio, lembra-te que eles não sobrevivem ao sol. Estou ao sol e me queimo, mas não me acontece nada.

Queria sorrir-te e morder-te as pequenas pinceladas carmim donde saem teus dentes separados, sarcásticos, que talvez sempre me zombaram. Mas não: um dia sorriste-me de verdade, eu vi em teus olhos. Eu sei. É porque me esqueço. Tu bem que poderias lembrar-me de vez em quando. Eu te amo. And no one can take that away from me. Ainda me resta algo de espírito, espírito que se senta sozinho e fuma e bebe – e que te ama, mesmo torpe assim.