quarta-feira, 8 de abril de 2009

Uma louca suicida

Quis jogar-me na frente do ônibus. Turn red, turn me red, please, I beg you. Permita-me cruzar-te as artérias. Senti a vibração do mundo na ponta dos dedos e tudo ficou dormente. Tudo tem pressa de ir. Eu queria permanecer semente.

Cerrei os olhos e cruzei a alameda. Mesmo cega ninguém me atropelou. Não, não, eu sou o trator de saltos brancos e saia de babados. Posso ser cega, mas sou trator. Eles aceleram quando tudo está vermelho, mas ninguém consegue passar por cima dos rangidos dos meus dentes. São apenas ruídos o que eles fazem, já eu, ranjo e toco música sem nenhum instrumento.

Sinto-te corroer-me o estômago. Um mendigo dorme num canto da rua. No outro canto tem um rato morto. Arroto mas quero vomitar na cabeça da criança idiota fantasiada de coelho. Um homem traveste-se com a mesma fantasia, mas para ele eu sorrio. Prefiro o ridículo e sujo ao puro e inocente.

Logo será Páscoa, mas esqueça tudo sobre Cristo. Quero apenas saber quando EU ressuscitarei. Nascer nunca me bastou. O prazo de validade da minha alma expirou há mais de mil anos. Eu teria que ser enlatada, talvez durasse mais. Mas sou um ovo oco, um aborto em estado de putrefação.

Mudei de calçada, invadi teus espaços. Do outro lado outro coelho me sorriu: Tia! E foi quando me nasceu qualquer coisa de clara, mas eu preciso do amarelo da gema. Derramei uma gota que evaporou no asfalto quente. Ninguém viu, só os olhos vermelhos do coelho.

Faltam-me algumas palavras, uma delas é paciência. Outra é amor, outra perdão. Mas se alguém quiser saber da luxúria, da soberbia e da arrogância, eu explico. Tenho muito mais que sete pecados capitais.

Glenn Miller gira, gira, eu queria ser um disco, mas sou muito pontiaguda, cheia de farpas. Sou daquelas madeiras vagabundas, que se contorcem na chuva e que quebram fácil. Não entendo a nobreza do mogno.

Adoro jogar sal nas lesmas e vê-las contorcerem-se até a morte. Tenho inveja das lesmas porque queria que me bastasse sal para morrer. Também tenho inveja das crianças que esfregam suas sapatilhas e suas roupas diáfanas na minha cara. Eu posso apenas errar alguns passos nas esquinas e esperar que o sal retenha todos os meus líquidos. Quero apenas ser seca.

Sai do banco e quis que me roubassem, porque assim eu gritaria: me mate!! E esse quem, nervoso, talvez puxasse o gatilho. Mas não apareceu nenhum ladrão, nenhuma arma de fogo, nada que explodisse o que me resta de miolos moles. Então eu tive que entrar em ebulição sozinha. Estou esperando o que me resta evaporar.

Rinocerontes escapam das descargas, impõem-me seus chifres nos pára-lamas. Se eu tivesse pára-lamas não estaria tão suja assim. Tudo me grita e eu não tenho mais tímpanos. Perdi-te no ruído dos automóveis.

Manadas fogem do circo, mas não há fumaça. Talvez se cansaram de ser palhaços, ou talvez viram o rato que eu vi. Eu sou o macaco que come pipoca e espera o fim do espetáculo, mas as tragédias nunca têm fim.

Perdi o ritmo e a melodia. Impossível qualquer canção. Sou-te uma máquina imprevisível e atroz. Ninguém suporta a loucura fria da minha engrenagem. Queria ser-te arte, mas não há possibilidade alguma de comunicação. Então escondo minhas cores, me sujo de cinzas doloridas e disfarço-me de amores.

Queria alguém que me serrasse em mil pedaços e me trancafiasse para todo o sempre na caixa de Pandora, de onde eu nunca deveria ter saído. Mas sempre há um curioso, então me abriram. E cá estou eu, aberta, espalhada, e não tem uma chave que me cerre.

No ônibus que não me atropelou eu entrei. O trocador me sorriu bom dia. Não sei por que o mundo me sorri se eu escarro. Quis perguntar-lhe o que o dia tem de bom, mas julguei uma pergunta demasiadamente filosófica para suas mãos acostumadas ao tilintar de moedas. Ele tilintou-me moedas, e eu estranhei aquilo. Não me roubaram, não me mataram, não me atropelaram, e ainda me restava a música dos metais.

Um coelho me sorriu e gritou tia, um trocador me deu bom dia e assim eu sobrevivo à angústia da minha própria hipocrisia. Resta-me sorrir quando quero cuspir, resta-me arrotar quando quero vomitar, resta-me beber quando quero me afogar. Resta-me apenas escrever quando não posso berrar. Escrevo porque não sei perdoar.

De nada adianta escrever porque a palavra aqui não tem a força do grito. Talvez se eu usar o Caps Lock: GRITO. Não adianta: o grito grita e gira na minha cabeça, e não há nada na garganta. Preciso do grito na garganta, do grito na boca, do grito no ar. Quero apenas gritar, e nem isso eu consigo.

Tentei amarrar essas palavras sujas, mudei quinhentas mil vezes as frases de lugar, e em nenhum lugar cabiam. Tentei qualquer coisa de ordenação lógica, de harmonia, de ritmo, de melodia, mas é também impossível: eu sou a desarmonia pura, não entendo nada de música. Por isso trepo em cima dos músicos, me enfio nos blocos, giro discos: porque minha palavra é muda e a minha poesia ficou surda.

Arrumei as gavetas para poder trabalhar em paz, mas o lugar onde durmo é imundo. Então nunca quero voltar pra casa. Preciso concluir o que começo, preciso do fim, e nada, tudo se me ensancha, me alonga, eu tenho horizontes mas queria ter paredes, muros de castelos medievais e muitos soldados. Nada, nem uma lança para atacar, nem um escudo para defender. Preciso então de um corte, e é num corte abrupto que vou terminar. Porque a única coisa que sou é o abrupto do corte na alma a se descarnar.