quarta-feira, 22 de julho de 2009

Mulher e Rinoceronte

Insônia: repete-se como os passos no corredor da casa ao lado, todos os dias, logo depois que os filhotes de pássaro reclamam o café. Excesso de cafeína que não me deixa dormir, deve ser, e o que me alucina. Excesso alucina. Mas esses grunhidos desesperados escuto pela primeira vez, antes dos pássaros anunciarem a primeira luz, e antes de ter necessidade do tapa-olhos. Grunhidos não me deixarão dormir, e eu estremeço como uma criança, agarrada ao travesseiro, vendo fantasmas no armário, imaginando monstros embaixo da cama. Fecho os olhos, mas já estava escuro antes. Tento tapar os ouvidos. Sons gemem, roncam, lamuriam-se: parece que a alguém lhe falta o ar. Tento ser lógica: alguém está roncando como um porco. Os passos que trabalham se cansaram e caíram bêbados no corredor. Um ladrão pulou o muro, e está tendo uma crise de asma. Apavoro-me, alguém deve estar tendo um ataque epilético. Algo sucumbe e geme, algo pede socorro, e eu estou estatelada na cama. A qualquer momento alguém irá quebrar esta veneziana.

Quando não se dorme assim se entorna a lógica do tempo, as horas são persianas. Primeiro os cachorros latem no escuro, alguns gatos no muro miam seus cios. Os pios estridentes dos pequenos pássaros famintos, depois os dos grandes afinados. Primeira comida, primeira luz, primeiro bocejo. Coloco o tapa-olhos. Aí vêm os passos no corredor. Imagino que vai trabalhar, pois nos dias santos os passos vêm mais tarde. Penso que vida boa tenho, que posso dormir enquanto passos arrastados trabalham no mesmo exato momento, eternamente, até um dia não poderem arrastar-se mais. Logo escuto carteiro, carteiro, de longe, carteiro, carteiro, chegando mais perto, carteiro, carteiro, afastando-se, e aí então Morpheu me carrega em seus braços.

Mas hoje não foi assim. A insônia não girou a roda dos ponteiros – os grunhidos interromperam seu ciclo. Os gatos esqueceram seu cio e os cachorros latiram desesperadamente, como se bradassem perigo, perigo. Os sons da madrugada eterna enlouqueceram, eram o ronco do motor de um velho barco, que tenta arrancar rumo ao oceano, mas está atracado no porto. Ratatata-ratatata-ratatata-ra ao infinito, infinito sem movimento, ancora no poço. E de repente um ronco agudo, como um último suspiro, a respiração de um morto, o sufocar do asmático, uma crise de bronquite. E mais alto, mais alto, até parecer expelir a ultima expiração. Mas não para. Inspira. E ratatata-ratatata-ratatata...

Não entendia o que era isso. Ainda era escuro, eu nada via. Apenas ouvia e os sons eram rinocerontes enfurecidos dentro da minha cabeça, como aqueles que eu via no zoológico, que corriam na minha direção, corriam o furor dos grandes ímpetos enjaulados há tanto tempo que não são mais capazes de saltar pequenas grades.

Quis saltar as venezianas, abrir as persianas dos olhos. Mas não quis luz. Quis descobrir o som no cerne do medo, sem lanternas, meter-me no âmago dos grunhidos desesperados e tateá-los, ouvir sua forma, sentir a vibração das suas cores, entender o ruído ofegante das cordas frouxas, fazer música do peito arfante que fenecia no corredor. Desenrosquei-me das cobertas e deslizei o nariz pelo vidro escuro basculante. Senti o amarelo das ruas solitárias rompendo os tons marrons, até criar o cinza. Ouvi de novo a respiração arfante, de novo o grito, mas nada havia depois da janela. Escutava passos, e um farfalhar, talvez ratos procurando comida, ou morcegos festejando o dia das bruxas. Mas não era outubro, e o barulho que saltava pelos poros da rua não cabia nos pulmões desses pequenos mamíferos.

Tentei as janelas da sala, grandes venezianas, e não as abri. Escorri as pupilas pelas frestas e encontrei duas pequenas íris negras, regozijantes, chafurdadas na areia preta da construção do vizinho da frente. Nessas duas pequenas janelas escuras e inocentes, cobertas de pelos rijos como os que envolvem as castanhas, alguém me olhava curioso, como se perguntasse: ousaste saltar as grades? Nas minhas janelas a pergunta ecoava, e eu tentava desvendar-lhe o mesmo segredo. Nada lembrava a agonia dos grunhidos, da respiração arfante, dos gritos mórbidos sufocantes – tudo era apenas curiosidade. O negro era plácido, como as lacustres águas serenas que banham de ébano a gruna onde sonha um deus polimorfo. Das fasquias castanheiras um nariz enorme saltava, torpe, desengonçado, e parecia sorrir o sorriso dos palhaços grotescos. Não vi seus dentes, sua boca camuflava-se na areia escura onde ele enfiava a cabeça como quem se aconchega em um travesseiro de plumas. Era enorme, e eu não sei dizer onde começava seu corpo nem onde terminavam os grãos de areia. Tudo era terra, terra com olhos, nariz e boca, terra que mastiga, respira e olha, terra que sou eu, terra que é ele, terra que é terra.Seres amorfos, deglutimo-nos, emaranhamo-nos, até que Morpheu tomou-nos em seus braços e juntos cavalgamos tu, eu, mulher e rinoceronte.