sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Monólogo de mim

Basta uma única sentença para tirar-me dos eixos, como se eixos eu tivera, mas uma simples sentença basta para virar-me do avesso, como se (eu) nunca do avesso eu estivera. Mas é com uma simples e única sentença que se condena a morte, como se sempre condenada a vida eu quisera.

Quem é o juiz que dita minha sorte? Sou eu quem crio os personagens da minha história, e se a sentença, tão simples e estúpida sentença, tem o poder de à morte me levar, é porque poderes eu atribuo a quem lhe profere. Quando eu vivia meu ser sozinho no mundo e me sentia plena, livre e feliz, tal julgamento ser-me-ia impossível, pois lá naquele então era minha vida um monólogo e o eu narrador coincidia plenamente com o eu - lírico. Agora que já tudo começa a confundir-se e emaranhar-se, quando os olhos enxergam embaçados, os poderes são divididos e o eu que escreve já não mais domina os personagens: eles ganham vida própria e saltam-me por sobre o ego, capazes de esmagar-me com uma só sentença; arrancam-me as palavras dos dedos e escrevem minha própria história.

Do poder das palavras se trata, ou do poder da interpretação, que no fundo também é poder das palavras: pois pode ser que as palavras não tenham sido proferidas com tal intenção de condena, mas se organizaram assim na mente do ouvinte e produziram esse efeito. Pouco importa tanta divagação lingüística se no fundo, de fato, já fui condenada e estou agora totalmente morta.

Telefonei para minhas amigas pensando em falar da tal sentença. Mas quando me imaginei contando o ocorrido tudo perdeu o sentido, e pareceu-me tão tolo que não tive coragem de importunar os outros com tanta bobagem. Por isso preferi comprar três cervejas e sentar na frente do Word pra escrever. Aqui, em frente à vastidão do branco eletrônico, existo apenas eu com meus dedos, e diante dos meus dedos e da vastidão não necessito sentir de mim vergonha nem penas.

Meu plano era sair do trabalho e comprar-lhe uma Felicidade Clandestina, palavras de presente ao ser que agora me divide. Fiquei tão irritada e tão condenadamente morta que não quis comprar livro nenhum, resolvi comprar um curto tecido de estampas de flores, cores da primavera para vestir-me e lembrar-me como é bom ser sozinha no mundo, para adornar-me assim que saia o sol e esquente, pois quando sair o sol o ser sozinho seguramente virá a tona, e já não terei mais tantas confusões gélidas em minha mente perturbada.

O que mais me intriga é como uma tão simples e idiota sentença pode fazer-me mudar de uma hora para outra, com a mesma velocidade que pisco os olhos. Num minuto estava completamente apaixonada, pensava em ir a São Paulo, pensava em ir a qualquer lugar onde com ele pudesse compartilhar minha existência; no outro estava em fúria e desejava vingança: pensei imediatamente em ir ao samba e comer a primeira carne que me aparecesse. Quis o destino que eu terminasse em uma loja de magazine gastando em vestido o dinheiro que iria gastar no livro, ou depois de proferida a sentença, em cerveja e táxi. Sorte de alguém que não é verão. Porque se fosse verão o samba me veria agora bela, irada e florida, e algum outro homem me veria morta sem nenhuma pétala. Eu teria sim um novo vestido já gasto, suado e manchado de sangue. E, no entanto, não me sentiria vingada, porque por mais que me vingue, nunca sinto que é o suficiente, que me satisfaz. O desejo de vingança é compulsivo, sempre deixa um espaço para mais desejo e mais vingança, espaço que nunca é cheio.

Então a solução não é vingar-se? E como, se vingar-se me acalenta? Não me satisfaz plenamente porque sempre desejo mais vingança, mas me acalenta sim. Hoje eu me vinguei, porque é incrível que quando se tem paciência para esperar a vingança apresenta a ideal situação para sua execução: pude repetir a mesma sentença a quem me condenou, em igual situação. Entretanto ele não se sentiu condenado, talvez seja por isso que eu me sinta agora tão, mas tão furiosa. Talvez porque seja realmente estúpido, eu até sei que é estúpido, foi uma situação estúpida e eu deveria relevar; mas tenho medo de começar a relevar e terminar relevando eu mesma, minha opinião, meu sentimento, meu ser no mundo. Por isso hoje eu não quero relevar e não vou relevar nada, talvez amanhã ou daqui a cinco minutos eu mude de opinião, mas no agora de hoje não: quero falar sobre a minha estupidez, que seja, mas quero falar que uma simples sentença tem sim o poder de condenar-me a mais que a morte, mas a mais completa desilusão.

Eu tenho necessidade humana de falar, por isso escrevo. Escrever às vezes é o registro solitário da conversa que se tem consigo mesmo. Às vezes é pura masturbação; outras, puro arranjo sonoro ou semântico. Mas agora é apenas confissão. Confesso então que já não sei mais se quero compartir a minha vida com outra pessoa, é a essa conclusão drástica que eu chego, esse é o resultado empírico da teoria do caos: o bater de asas da borboleta foi aquela sentença, o resultado é um total questionamento de paradigma da construção do meu ser no mundo. Quero ser de novo sozinha no mundo, mas será? Será possível ser o ser sozinho e ser também o ser no outro? Será possível permitir ao outro que pertença a nossa construção e ainda assim manter-se a parte e relevar seus julgamentos, suas sentenças?

Eu ainda tenho uma esperança mórbida e moribunda que me sussurra nos ouvidos: tenta que pode ser que funcione, pode ser que você consiga misturar todos os pontos de interrogação, esticá-los, e fazer uma exclamação linda no fim. Uma esperança tétrica que sempre me atiça com a idéia de surpresa, porque sabe que meu combustível é o inesperado. Mas ando com tantas saudades de mim mesma, e com tão pouco tempo para desfrutar-me, que não sei se quero gastar esse tempo desfrutando-me com outra pessoa. E não é uma pessoa qualquer, é uma pessoa que amo muito; mas entre o amor ao outro e o amor a mim, se eu tiver que escolher, escolho e escolherei sempre o amor a mim. Talvez eu ainda não saiba amar, eu não sei, porque em mim eu nunca sou juiz, sou apenas ouvidos e estômago. Juiz em mim é sempre o outro. Mas eu sei que das vezes que fui mais amor ao amor que a mim, quem terminou cega no escuro do rancor e da mágoa fui eu, então amar o amor com sentenças de morte eu não amo mais não. Se é para viver um amor que seja sem indelicadezas, sem condenar-me todas as interpretações à estupidez e ao ridículo. Quero amar o amor que respeita minhas idiotices e que não as julguem, mas as compreendam, mesmo ridículas. Afinal, não é por ser ridículo e idiota que não se deve respeito, se fosse assim pelo menos metade da população mundial estaria agora mais morta que eu.

Sei que estou aqui, de novo, no mesmo lugar e com as mesmas angústias. Espero que alguém se conecte, espero que me responda sem perguntar, espero que me pergunte sem eu indicar a dúvida. Ah, o grande problema das mulheres: esperar que os homens adivinhem o que elas sentem, que perguntem o que elas já antes querem responder, que aticem o que elas querem falar. Cansa ter que indicar o caminho todo o tempo. Mas sei que se não for assim, é com o desejo de vingança mal vingada que ficarei na garganta, e meu estômago não suporta mais engolir nada, absolutamente nada.

Eu sei que todo esse drama que faço por tão pouca coisa é-me muito útil e necessário, pois é assim que rompo barreiras e delimito meu território, imponho-me um modo de sobrevivência sem o qual eu só caminho para o suicídio. Então agora, se eu resolver ir para São Paulo e é provável que eu vá pois nunca resisto às tentações da minha vontade, eu lhe direi como serão as coisas. O que me incomoda com tal sentença é que eu sempre estou grudada no computador esperando que ele me contacte, eu sempre estou a espera. Mas também tenho que entender que não é culpa sua nem posso lhe impor meu comportamento e esperar que o dele seja igual.

Chego a um lugar que não sei mais para onde seguir. Se continuo caminhando é em círculos.

Sei que ainda preservo o vestido de primavera intacto, para que tu me desflores as pétalas coloridas, corazón. Tenho todos os botões guardados, se sim gastos, mas novos, da nova esperança de sol raiar todo dia.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Dos Monges o súbito ( prólogo)

Os monges perduram na primavera
Eles e toda sua compaixão para com a decadência
Pois possuem a sabia gentileza da paciência
Pela certeza de que nem tudo que se dá
Se dará por conivência.
Assim sobrevivem séculos e séculos todos os homens
Mais do subterfúgio de sua certeza de retirante
Do que do sentimento de salvador da pátria

sábado, 9 de outubro de 2010

O monge

Um monge franciscano caminhava entre o mendigo, ele dormia, um cobertor embaixo do viaduto. Uma mulher carregava um pão na mão, como um tijolo. O ônibus parou de repente, como se não estivesse programado pelo sinal vermelho. O monge e o mendigo se misturaram de tal forma que não sabia mais quem era quem, e pensei quem seria o grande vilão a despertar o sono sagrado dos mortos. E a mulher com o pão tijolo pesava sobre tudo, branca, entre as vestes marrons e os cobertores que se engalfinhavam.

Eis que surge uma cabeça e o ônibus arranca. O sinal não é bem programado. Eu fiquei com a esperança da imaginação em minha cabeça, essa mesma que me acompanha há tantos anos. E pensei que seria bom um monge franciscano, porque ele de certa maneira tentaria semear algo de paz entre nós do viaduto. Algo de humano.

Fazei com que eu procure mais entre os meus encontrar algo de mim. Fazei com que sua dor se misture com a minha. Fazei com que caminhe entre os sujos e seja da mesma forma suja para assim compreender sua sujeira. Fazei com que eu ame como quem ama de um olhar de um sinal, de uma parada de ônibus, no mais que de repente. Fazei com que esse ser que olha entenda por que eu caminho descalço entre os ratos e baratas e lama das ruas, e que de mim não sinta nojo. Fazei com que na mente dessa pessoa exista uma total quebra de paradigma para entender o quanto eu sou bonito. Fazei com que o outro possa compreender a doação que há em mim.

Assim deveria ser a oração dos franciscanos.

E depois eu segui no ônibus e o franciscano já não mais existe entre os saltos do meu scarpin negro negríssimo.