sábado, 13 de setembro de 2008

Discussinha

Acusam-me de dona de razão. Acusam-me de louca. E depois, o antagonismo sou eu. Logo eu, essa cópia barata de um intelectualoide bêbado. Sou de uma obviedade cínica. Não será melhor ser surda? - pergunta-me o grilo falante descompensado e aturdido por tantos dedos e tantas embalagens.

Eu retiro-me, recolho-me a minha insignificância. Isso, vou estudar e você vai à merda, seu arrogante. E tudo por culpa dos judeus e dos romanos. Quem matou Jesus? Eu não fui, mas provavelmente joguei pedra no saco dele ou colei chiclete na cruz. Ou pior, trepei com Jesus. Foi isso. Fui Maria Madalena. E tive filhos órfãos e perseguidos.

Jesus morreu, dizem os religiosos, para salvar-nos dos nossos pecados. E nessa lógica, se é que há lógica nisso, todos nós somos culpados pela sua morte. Na minha lógica torpe, isso significa que podemos pecar à vontade, porque Jesus já pagou e muito bem pago por tudo isso e ainda umas três gerações de pecados.

Precisamos urgentemente chamar o CSI pra resolver esse mistério de mais de dois mil anos que até hoje cria turbulências na vida das pessoas. Eu nunca havia me interessado tanto assim, mas hoje tive vontade de haver lido todos os livros que papai sempre me disse pra ler. Mas ninguém sabe da verdade, e tudo são teorias. O que importa é a argumentação, a retórica. Toda realidade é uma invenção, uma construção. Não sei por quê se discute se no fim todos temos algo de razão e algo de loucura. O paradoxo do antagonismo é uma das poucas coisas que penso que tenha algo de verdade.

Mas, no fim das contas, prefiro mesmo ficar com Emília, que diz que a verdade é uma mentira contada muitas, muitas, muitas vezes e em que todo mundo acredita.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Crônicas do Estrangeiro

Tenho tanta vontade de ir à faculdade que, nas raras em vezes em que dou o ar de minha graça papagalis nas terras de Puán, não tem aula. O motivo aqui é sempre o mesmo: não tem dinheiro pra porra nenhuma, a universidade está caindo aos pedaços, os professores não ganham ou, quando ganham, quase nada, e tantos etecéteras quantos caibam nos números de qualquer estudante da rede pública.

Na minha terra, pelo menos, e apesar dos mesmíssimos problemas, quando eu “estudava”o motivo para não haver aula variava, cada dia era uma novidade: um dia resolviam fazer uma festa de sei lá quê, alugavam um puta trio elétrico e passeavam contentes em frente aos prédios com as pessoas tendo aula dentro. Obviamente todo mundo preferia descer e enfiar o pé do que ficar enfiado dentro de sala, então a gente dizia que com aquele barulho não dava pra ter aula não e pronto, não tinha aula. Outro dia o professor resolvia que não iria, sei lá por quê, não ia mesmo e pronto. Tem as clássicas chopadas sempre no início dos semestres dedicadas a bebemorar a alegria de se entrar para uma universidade. E a primeira semana de aula dedicada a fazer arte na cara e no corpos dos calouros. Os feriados, os que são perto dos feriados, quando chovia muito porque alagava tudo, etc. Ah, e tinha greve também. Pelo mesmo motivo daqui.

Aqui é sempre a mesma coisa. Mas acontece que ontem caiu uma viga de um banheiro de uma das faculdades, e por apenas dez centímetro não acertou uma mocinha. Não entendi qual foi o drama, uma viga caiu, ora bolas. Não sei como ainda não desabou o prédio inteiro! Mas aí pronto né, já viu. Ô povo pra gostar de arrumar um motivo pra uma revolução! Fecharam a UBA, a maioria das faculdades. Não teve mais aula em nenhuma delas e parece que vão ficar assim, fazendo passeatas, até sábado. Depois eles voltam às aulas.

Nem fazer greve direito eles sabem, coitados. Na minha terra sim que a gente sabe fazer greve. Quando pára, pára-se logo três meses de uma vez. Aí depois voltamos também, mas pelo menos tiramos umas feriazinhas antes e não tem nada disso de ir fazer passeata, de quebrar as coisas, de arrumar confusão com ninguém não; é tudo na paz, tomando cervejinha ou água de coco, praiana, sol e samba. Ah, meu Rio de Janeiro!

Aqui esse povo pára um dia, pára outro, e fica assim a vida toda, nunca se sabe quando vai ter aula, quando não vai, mas a gente acaba descobrindo e pode ter certeza que é sempre o mesmo motivo. Não entendo isso, falta dinheiro não falta, vamos assaltar um banco, vamos seqüestrar um rico, vamos colocar o reitor pra mijar no mesmo banheiro que a gente mija, mas, por favor, ficar repetindo que quer aumento de presupuesto não vai resolver nada. Eu não sei quando que as pessoas inventaram que poderoso escuta: os deuses são todos surdos.

No que se refere a mim, faço greve pra parar de estudar mesmo, porque a instituição já faliu. Não dá mais pra exigir que o estado garanta o ensino público porque não existe mais público, e não existe mais estado. Acabou esse negocio de saúde publica, educação publica, segurança pública, isso ficou lá no estado de bem-estar. Quem quer viver bem agora, paga, e ou você tem dinheiro, ou não. Ninguém é mais cidadão e todos somos interessantes apenas e enquanto consumistas em potencial.

Acho então que todo mundo deveria parar de consumir universidade. Se acabasse essa palhaçada de ter que ter “ensino superior”, universidade não seria um troço tão interessante pros grandes grupos econômicos e talvez os deuses poderosos não sucumbissem à sua ganância. Nada que é extremamente lucrativo é para o bem público.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Páscoa

A mesma raiva de novo. Raiva por não compartir a raiva. Com o que você está chateada? Ele pergunta, e eu, eu não respondo. A minha resposta não lhe parecerá razoável, eu já sei. Nunca lhe pareceram razoáveis nem uma das minhas respostas.

Eu preciso entender que o que tem valor pra mim, tem valor só pra mim e não pro outro. Talvez existam outros que compartam meus valores, minhas importâncias. Juro que da próxima vez, se houver próxima vez, que eu me relacione sério com alguém vou antes fazer uma bateria de perguntas: você gosta de carnaval, de se fantasiar e de correr atrás dos blocos? Você gosta de armar árvore de Natal e encher de presentes pra todo mundo? Você gosta de esconder ovos de chocolate na Páscoa, e de procurá-los depois? Essas são algumas das minhas importâncias. Preciso comparti-las, porque só, essas importâncias não têm a menor graça.

Como vou esconder ovos de Páscoa de mim mesma? Como vou armar uma árvore de Natal com presentes só pra mim? Como será que se faz o bloco do eu sozinho? Tudo isso, tudo isso só tem sentido na comunhão.

Acabei de descobrir, ao ler-me, que sou muito muito católica. Que irônico isso, nunca havia pensado nessa possibilidade. Carnaval, Páscoa, Natal. Todos pertencem ao repertório do catolicismo. Menos a raiva, eu acho.

Hoje Jesus ressuscitou, dizem. Eu preciso ressuscitar um outro ser no mundo em mim. Morri no carnaval e virei cinzas, veio a Dona Quaresma, velha ranzinza e franzina, e agora é tempo de ressurreição. Já se foram os quarenta dias de vacas magras, agora é só abonança. Quero quebrar a casca do ovo. Quero encontrar o que tem dentro do mundo.

Telefonei pra casa hoje, e pude ouvir, apenas, o burburinho de todos juntos. Todos juntos. É isso que eu quero. Quero ser menos eu e mais nós, muitos nós, entrelaçados, emaranhados, nós de marinheiro. Comida farta e casa cheia. Barulho de gente no íntimo. Cordões que se abraçam no carnaval. Surpresa de criança. Quero ser aquilo que se é na hora de dar as mãos. A comunhão do corpo, do vinho e do pão.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Hand written, hand made: Palavras feitas a mão. (Parte 2)

Um filhote de baleia escolhe um veleiro para ser sua mãe. Agora procura-se desesperadamente uma mãe baleia praticamente extinta. O veleiro está cansado e não pode alimentá-la. Já as comemos todas. E construímos nossas casas de pedras com o óleo negro de suas entranhas.

Restam poucos camarões, e as ostras e mexilhões absorvem os estranhos metais pesados do oceano. O cerne da terra congela, assustado. Eu guardo calado um medo visceral.

O pescado e a carne sobem no mercado. Os seres que consumimos se extinguem a cada dia. Mas ainda restam muitas bocas famintas e tétricas, que precisam ser caladas. Calemos-nas, eles dizem, e jogam-nos migalhas e um pouco de confete.

O colpaso do capital. Falta comida, falta comida, e sobra metal. Nos grandes conglomerados fast-food as lixeiras nos dizem que é legal jogar fora. Deen-nos de comer, elas dizem. E depois vomitam toneladas de gordura.

Ainda não pude encontrar nada aqui no fundo. Escavo em terras mortas. Escavadeiras sorriem com seus dentes enferrujados. Apodreço, e não me cai nenhuma lágrima. Seca segue a terra.

Hand written, hand made: Palavras feitas a mão. (Parte 0)

A vida em suspensão: elétrons que vagam sem núcleo, que não se atraem nem se repelem. Um breve pulsar me leva ao centro da terra, onde tudo é inóspito e frio, onde talvez eu more, no escuro veio da raiz. Há água em abundância, porém no mais terrível estado da matéria: o que não pode ser bebido nem respirado, o mais difícil pra mim, o que tem que ser mastigado, deglutido, engolido. Não gosto de mastigar, prefiro sempre sorver e respirar.

Gosto de deitar na areia e ouvir a respiração dos siris, cavando nas profundezas, e sentir medo de ter o tímpano arrancado por uma pinça afiada. E cavar a terra e encontrar as minhocas, não sei como conseguem viver com a responsabilidade de fazer a terra respirar. São esses pequenos seres que fazem o mundo respirar. No meu mundo esses seres foram extintos, se solidificaram depois da última era glacial.

Os seres do movimento foram aprisionados dentro das pedras de gelo, talvez eles ressurjam depois que o aquecimento global borbulhar os mares congelados da terra. Mas agora, lá no veio da raiz, a água só se solidifica. Não há mais terra nem mar, só gelo, distante e frio gelo. Os siris não pinçaram meus tímpanos e não há mais tímpanos pra pinçar: estou surda ou desaprendi a escutar.

A tartaruga quando entra no casco, o avestruz quando enfia a cabeça na terra, eu quando fecho os olhos, tampo os ouvidos e não respiro por alguns minutos: somos todos abstrações do mundo, negações da existência, desistências da vida.

Um tubarão pré-histórico e incrível saiu das profundezas do oceano pra morrer na superfície. Só morrendo se alcança a superfície? Queria alcançar a superfície antes... Por que o segredo do mundo se esconde no profundo oceano? Pra que se quer mesmo saber o segredo das coisas, o que vem antes, a coisa primeira? Queria ser mais gaivota e menos concha. Queria ter mais bordas, mais beiras.

O começo da coisa primeira me parece tão óbvia quanto estar no útero, a consciência dissipada na água, a idéia do feto de ser mãe, placenta e filho, tudo ao mesmo tempo, sem saber o que é tudo. É uma idéia de feto que nem é mesmo idéia, porque ainda não existe a idéia da idéia. Nascer é a primeira transgressão e o primeiro aprisionamento. Transgride-se a ilusão de comunhão do feto e passa-se a condição de aprisionamento do indivíduo único. A consciência vai pro aquário onde não nadam os peixes. A possibilidade de ser e saber tudo, e a fatalidade de não capturar nada.

Nasce-se porque se tem que nascer, o parto é sangue, é pranto, é suor, nasce-se forçado. Nascer é até fácil, difícil é permanecer nascido. Difícil é quebrar a casca do ovo, bicada por bicada, difícil é comer a seda do casulo, mordida por mordida, e nascer com asas moles de manteiga. Difícil é transpor a barreira dos elementos, viver onde se é estranho. Permanecer é fácil, difícil é transcender.

Quero sentir de novo o gosto fresco da primeira gota de leite. Eu, que já tinha nove meses de velhice uterina e outros infinitos anos moleculares; eu, que quase morro asfixiada antes de nascer; eu, que tomei fôlego e consegui sentir o frescor da primeira gota de leite quente, quero, depois de uns tantos anos de terra, sentir de novo o frescor da gota de vida primordial. Quero o primeiro respiro, o primeiro choro, o primeiro sorriso. Quero ver a flor pela primeira vez. Quero olhar o mundo com a mesma surpresa e estupefação de quem acaba de nascer.