quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Úlcera ou Último Ato

Se Van Gogh cortou um pedaço da orelha, eu arrancarei os tímpanos. Meu último ato antes do suicídio. Abnegarei da música, única que me persuade a ainda escutar. Depois dos sons dos anjos vêm os gritos tortuosos dos demônios que moram em mim. Prefiro ser surda.

Se surda não me convenço mais dos absurdos, não creio. Melhor é ignorar. Um bêbado que não escuta logo desaprende a falar. Nunca mais quero te comer de novo, nunca mais dorme comigo, nunca mais passo aí pra te buscar. Eu ignoraria o frigorífico de carnes podres que se chama realidade. Veria as carnes dependuradas e não escutaria seus clamores, quero te comer, vamos nos comer. Seriam apenas carnes, e eu vegetariana. Nada de estupro, nada de aborto, nada de sangue nem de suor. Nem gemidos. Seria plena, surda e muda, com um par de olhos que não escutam. Veria a crueldade das carnes podres, que são tão carnes e querem se deglutir, se ruminar e depois vomitar a sofreguidão do mundo, como se fosse bárbaro e fabuloso. Aplausos, são todos comedores! Eu preciso vomitar.

Escrevo porque ainda não aprendi como se faz para vomitar e não doer, não sentir metade do estômago esfarelando-se, o fígado liquidificando-se em fétido amarelo. Não sei como se vomita e não se chora, eu não suporto mais chorar. Escrevo, então, porque me torno quase surda e vomito, escuto apenas os sons doloridos do meu estômago que se contrai e grita. Sou eu e só. E eu sou incrível na podridão que há em mim.

Ser sujo cansa. Arranquei a imundice que visto e entrei no mar, escondida, porque ninguém pode saber esse segredo, como eu me purifico. Toquei o fundo e encontrei lama, lodo pegajoso e gosmento, nada de estrelas, conchas nem caracóis. Muitas outras almas devem ter tentado se purificar nesse mesmo mar antes de mim, então se saturou, o fundo acumulou os restos das carnes podres. E não sobrou espaço para os meus restos: desisti de ser pura, abri outra cerveja e comi a primeira carne imunda que me apareceu pela frente. Agora tenho ânsia de vômito e não consigo vomitar. Necessito ser surda, calar os tormentos, arrancar a pele e vestir uma outra armadura de concha: minha alma é da textura dos moluscos. Preciso calcificar os tímpanos para não escutar meus próprios lamentos.

Novamente te encontro, vazio que tanto me atormenta. Sei que te necessito, espaço do movimento, sei que tu és possibilidade de caminhar. Mas devo confessar-te: nada se move. Duas mãos monstruosas apertam-me a garganta, descem-me pelo esôfago e chegam até o estômago – e é lá onde elas me arranham, torturando-me; ora suas unhas me acariciam de leve, ora me cravam fundo e me sangram. Angústia, sim, já sei do teu nome. Mas e o teu significado? Se sois possibilidade, por que me constringes?

Nem chove, e hoje queria tanto que chovesse. Sentir a eletricidade do antes da tormenta, ser movimento de inundações e ter medo de me afogar, de ser terra devastada e suja, de encontrar o fétido odor do rato morto. O ar é abafado, uma fornalha queima o resto de lixo que sou. Nem sendo lixo consegui entupir teus bueiros, resta-me ser cinza agora, entrar em combustão espontânea e explodir em poluentes químicos que te envenenarão lentamente.

Para: achei um bicho raro. Voou bem no meio do meu nariz, é claro, parte que mais me salta, como salta o ego. Agora ele se esconde entre as teclas, e eu não sei se quero esmagá-lo ou observar sua insignificância que caminha moribunda, sem dar-se conta que a ponta do meu dedo pode aniquilá-lo a qualquer momento. Acho que ele fenece, um pedaço de madeira com asas arrasta-se e esquiva-se dos meus toques. Soprei-o, mas ele não voou, desapareceu. Soprei a ponta do meu dedo, e minhas mãos continuaram aqui, inteiras. Nada se me move.

Era eu quem deveria ter desaparecido. Esqueceria dessa nossa insignificância, dos suores desperdiçados, dos estômagos esverdeados, da ânsia de vômito que me dá ser humano. Não: escrevo e torno-me presente, repito, giro, subo e desço e é sempre a mesma angústia. Por que não me calo? Por que essa teimosia em arranjar sons, em tentar algo de delicadeza quando há apenas grosseria no mundo?

Quero apenas não querer mais nada. Ser-me suficiente. Tenho dedos que esmagam, dedos que escolhem letras, dedos que escolhem cores, mas escolho sempre as erradas. Por que não matei o bicho raro, por que o soprei e permiti que desaparecesse? Eu deveria tê-lo esmagado, só assim eu sorriria. Mas permiti que voasse para onde se camufla, e eu não posso mais saber quem é madeira, quem tem asas, nem onde estão essas suas castanhas que não me olham mais. Por que escolhi castanho se prefiro azul? Talvez eu não escolha nada, mas penso que escolho porque tenho dedos e nariz que apontam.

É uma carnificina disfarçada de prazer, mas no fim estamos todos vazios, confesse. Tu provavelmente já te sentiste sem sentido. E quando se destrói o símbolo, perde-se a poética. Entornaste meu líquido, te deliciastes; agora que sobra só o invólucro, me jogas fora. Não sabes que as marés enchem quando muda a lua. Preferes o plástico, e me atiras a garrafa que me pensas no oceano. Por isso é tudo lodo sujo e pegajoso, gosmento, mas tu não percebes, não, e continuas a entornar os líquidos dos vasos. Espero que um dia bebas de um que guarde um óvulo de serpente, engulas e te nasça um veneno que te corroa desde dentro. E eu ver-te-ei moribundo caminhar entre minhas teclas, e dessa vez não te perdoarei: esmagar-te-ei com a fúria dos meus dedos que apontam, com arrogância que nasce do meu nariz; meu ego sobrepor-se-á ao teu, despejarei meu ódio e verter-te-ei em vômito, em teu próprio vômito, até que te afogues e sufoques por completo. Assim como fazes com os vasos onde sorves todo o líquido, absorverei até tua última gota de sangue, mas não te ofertarei ao mar: te esmagarei com os pés e te carregarei como sujeira no canto da unha, para que possa pisar-te sempre, e para que nunca te esqueças da tua condição também humana.