domingo, 27 de março de 2011

Ira

Escorres-me pelas pernas. E desces-me pelo corpo, água borbulhante, febril. Faz mais de 40 graus em mim. Encoste-me e sintas: eu fervo. Fervo todas as suas bobagens, fervo para esterilizar.


Cigarras cantam endoidecidamente. Caem mortas pelo quintal. No varal brinca uma esperança, verde, que se sacode entre as fantasias, quimeras minhas de outro carnaval.


O asfalto borbulha e lança tremulas flamas, espectros donde os seres de sapato passam. Nós os agarramos e ninguém faz nada. O mendigo continua carregando seus colchonetes e casacos, suas caixas, seus sofás, seus jornais. As crianças, não, as crianças não, os trombadinhas brincam no chafariz. Faz muito, muito calor.


Uma moça bonita passa tomando sorvete. Ela tem vestido e cabelo ao vento, e são todos azuis como a sombrinha que carrega, como o céu sem nenhuma nuvem. Da moça riem. E o sorvete derrete.


Outro homem passa carregando um negro terno pesado, ele vai pro trabalho e sua moça cuida das crianças. Ou nem tem nenhuma moça. Ou tem. Olha para as bundas que passam desafiantes na Avenida, que se exibem como se já fosse Carnaval. É verão. Da moça fresca todos riem e do homem nada. Do homem nunca riem e a moça é sempre a palhaça. Um dia a moça se irrita e cansa, põe seu melhor vestido e não olha, dança. E quando dança na sua divindade todos os homens param e a moça já não olha, arrasta. Arrasta e come qualquer que queira enquanto o homem com terno pesado caminha olhando as bundas que desfilam na Avenida, enquanto sua moça dá a bunda para um moço que não olha, mas come.


Assim deve-se fazer com os homens.