A lua era um abraço. Ela se banhava no quintal como se a água fosse suja: está suja, ela disse, mas era apenas sombra. Entrou água no meu nariz. Entrou muito mais que água em seu nariz. Eu bebo o vazio do mundo. Todos são incríveis, todos. Nada sabem eles do que é pensar que se vai ficar cego. Hoje eu quase fiquei cega, quase. Hoje eu quase fiquei cega porque meus olhos estavam muito abertos. Então tive que beber para poder fechá-los um pouco. E foi quando descobri o fascínio nos olhos do menino que catava tatuí. Tatuí. Tatuí é o som que aqueles olhos faziam, mas o tatuí estava morto. Ele cavou uma piscina para encontrá-los, para que o mar pudesse entrar e mantê-los vivos. Ia atrás das bolhas do tatuí e descobriu um, morto, e não pode crer. Jogou-lhe água, observou-o: os olhos arregalados, vivos, estupefatos – sacudia-o como quem tenta ser algo milagroso. Viva, era como se ele dissesse: viva! Nada, o tatuí não viveu. Tatuí morto. Levantou-o na ponta dos dedos, equilibrista, e soprou-o ao mar.
Interessava-lhe catar tatuís vivos, sua coleção de espécies que se movem livres e de repente são aprisionadas num copo de plástico, com água suficiente apenas para respirar um pouco.
Ela, nua, que tomava banho na água suja, deve ter inalado o pó daquele tatuí morto quando sorveu a água turva de sombra, é claro. Agora dorme e venta, e há um pequeno ser ao seu lado que sonha em morrer e virar anjo. Ele disse: mãe, quero morrer. Por que? Quero morrer para virar logo anjo. Mal sabe ele que é uma espécie de anjo de asas tortas, um espírito zombador que sorri com seus dentes de peste e é divino ao mesmo tempo. Há um outro espírito em minha casa que carrega um par de olhos tristes azuis e é bondade pura. É a própria personificação do verbo doar. Eles são anjos e não sabem, porque são tortos. Um quer morrer para então tornar-se, outro tem fascínio pela morte mas odeia a idéia que o seu tão próximo morra. Aquela outra que fechou o verde das cortinas é também das divinas que aspiram pó de tatuí e bebem para deixar de ver o verde do mundo. Ainda bem que agora ela dorme, linda e nua, com aquele que quer morrer e tornar-se logo anjo ao seu lado.
Tudo é estranho, eu sei, e nessa estranheza reside a beleza do mundo. Alguns seres do universo esqueceram-se de sua divindade. Eu sou prepotente, logo estou mais próxima do inferno, o que não deixa de ser divino. Embora pense ser o Diabo menos opressor que Deus; se tantos reis perdem seus tronos, por que a onipotência não pode ser questionada? Há algo de demônio em mim. Escolho o aborto porque talvez eu nasça um anticristo. Quando eu sorrio de lado e torço o pescoço há algo de demônio em mim. Talvez eu dê a luz assim.
Há anos não encontrava um Tatuí. E, vendo aquele menino maltrapilho com olhos famintos, pude descobrir o segredo do mundo. Mas então eu quase fiquei cega, e porque me preocupei mais com a cegueira, e com a loucura, do que com o segredo do mundo, eu esqueci e não posso mais contar nada. Mas eu sei, por ínfimos segundos eu vi o perigoso segredo do mundo com os olhos dos cegos.
Faz muito calor e há muita luz, e a luz é o precipício da escuridão. Eu tive medo, mundo, tive, porque cheguei ali na beira do precipício. Pássaros com rabos de tesoura nos sobrevoavam, um ser com olhos doces escondia-se entre as serpentes e submergia no mar, outro descobria tatuís. Um moço dos magros esquálidos que comem todos os músculos carregava nos ombros uma enorme fêmea fértil, cheia de carnes, a própria deusa da cópula com as pernas apertando-lhe a cabeça. E jogavam: quem te afoga primeiro? Eu não sei como uns podem carregar tanto peso e outros serem tão leves, com tatuís na ponta dos dedos. Aí está o equilíbrio do mundo.
Isso tudo eu vi hoje, e te pergunto: como não ficar cego? Estou quase cega e bebo para apertar os olhos, e enxergar os verdes que se escondem nos cinzas das nuvens. Tenho tiques: amarro os cabelos no alto, dou nós, coço o nariz, fumo. Estou quase saindo de mim e não posso, quero chorar e não consigo. Uma lágrima me acalmaria. Mas não, eu decidi ser viva. E arregalo os olhos, tenho espasmos, bailo até aquele que me congela a dor para arrancar o último gole, raspar os glaciais. Não mais o mundo me transborda, eu me transbordo, eu sou o mundo inteiro. Não sei mais o que é meu corpo, não tenho mais estômago nem fígado. Já arranquei os tímpanos e hoje quase perdi os olhos. Tenho ainda pulmões, podres e cancerosos, e é lá onde te sinto. De repente respirei jazz e morri de saudades de ti, tu, mi porteño, donde carajo andarás que olvidaste todo lo increíble así, tan pronto? Tenho saudades de respirar-te, de sentir teus ossos, o teu cerne. O que ainda te mantém de pé?
Ainda bem, enfim, eu consegui chorar. Agora não vou mais transbordar até morrer.
Eu surto de tanto amor. Eu sei que tu não me aguentas mais, eu sei, é porque eu tenho uma espécie de amor parecida com a dos gatos. Veja os gatos: eles sobem em teu colo e te acariciam, depois te cravam as unhas para amaciar o lugar em que se deitam. Ninguém gosta, eu sei; mas eu, eu amo, amo quando os gatos me enfiam as unhas, dou-lhes minha própria cabeça para que me cravem todo o seu ser, e para mim isso é massagem pura. As pessoas se assustam, as pessoas se assustam quando acariciam um gato e de repente ele as morde. Mas entenda: isso pertence ao ser fantástico dos gatos, e o assustador de certa forma pertence ao fantástico. Eu sou um ser fabuloso como os gatos, que se move feito louca, mas não me tente entender: ame-me como eu amo os gatos que me cravam suas unhas e que me mordem.
Uma vez eu tinha um gato entre as pernas. Ele estendia o rosto para que eu lhe acariciasse o pescoço, me serpenteava, me ronronava. Era a animização do sol, com seus raios rajados, amarelos que interrompem brancas nuvens. Eu quis me levantar, quis deixá-lo, tirá-lo do conforto de minhas pernas. Ele se enfureceu e cravou suas unhas em meu maxilar, agarrou minha cabeça como quem fosse começar a devorar-me pelo cérebro – mas não fez mais nada, apenas cravou-me suas unhas no rosto e enfureceu-se. Soltei-o agarrando-o pelas patas e ele não me arranhou, ficaram-me apenas as marcas das pontas de suas unhas. Entenda os gatos e irás me entender: quando eu te cravar as unhas é porque quero que me segures as patas. E óbvio que me enfurecerei e te atacarei quando tentes expulsar-me de teu colo, por qualquer motivo que seja.
Restam-me apenas poucas horas para chorar o que perdi das minhas unhas entre tuas pernas, dos meus olhos que acendiam quando tu abrias os teus, de como nos fitávamos horas, como eu fito os gatos, horas que fitei-te para que viesses ao meu colo. Lembro-me da primeira vez que agarrei-te pelo pescoço e depois levei-te a New Orleans. Comprei-me uma serpente de plumas negras e nos envolvemos, espalhamos gotas de plumas pelos olhos que se nos passavam, dois gatos que enroscam os rabos. E pedi um Irish Coffe às três da tarde num jazz de esquina, e te filmei – você sorria com os olhos, dentes iluminados por mim que te dava tantas voltas. Embriagamo-nos e tu não te importaste. Quando foi que o inebriado do meu ser começou a te incomodar?
Levei-te do êxtase à tortura chinesa, tão típico de mim. E tenho poucas horas para trazer-te de volta. Porque amanhece e os anjos vão à escola. Minhas últimas canções, esqueceu? Eu sou o demônio com minhas serpentes que escorrem-me pelos ombros. Tenho agora só uns minutos para que me enxergues, não com os olhos últimos, os olhos do divino, mas com os primeiros, de terra, aqueles que me viram vestida de camareira, fumando, sentada sozinha, transbordando – aqueles olhos que transbordavam junto com os meus. Meus olhos de gato, os teus de leão. Quando éramos nós nada disso importava. E eu juro que tenho saudades do inferno em que vivemos. Eu prefiro. Eu prefiro ser inferno, mas eu gostaria que fosse o inferno dos gatos e do jazz.
Eu te amo de uma coisa louca e estranha, te amo da memória do amor. Memória, memória que eu nem sei mais o que é memória. Tento aniquilar minha memória e não consigo porque tu me permaneces. Sabes que talvez eu nunca tenha te amado como hoje quando estou sem ti? É o amor de um tesouro enterrado não se sabe onde, o desespero do pirata. Cavo todas as terras e só encontro tatuís mortos, nada de ti. Continuo a escavar e já amanheceu, é a hora dos anjos, eu tenho que fingir que vou dormir – sou demônio, lembra-te que eles não sobrevivem ao sol. Estou ao sol e me queimo, mas não me acontece nada.
Queria sorrir-te e morder-te as pequenas pinceladas carmim donde saem teus dentes separados, sarcásticos, que talvez sempre me zombaram. Mas não: um dia sorriste-me de verdade, eu vi em teus olhos. Eu sei. É porque me esqueço. Tu bem que poderias lembrar-me de vez em quando. Eu te amo. And no one can take that away from me. Ainda me resta algo de espírito, espírito que se senta sozinho e fuma e bebe – e que te ama, mesmo torpe assim.
Interessava-lhe catar tatuís vivos, sua coleção de espécies que se movem livres e de repente são aprisionadas num copo de plástico, com água suficiente apenas para respirar um pouco.
Ela, nua, que tomava banho na água suja, deve ter inalado o pó daquele tatuí morto quando sorveu a água turva de sombra, é claro. Agora dorme e venta, e há um pequeno ser ao seu lado que sonha em morrer e virar anjo. Ele disse: mãe, quero morrer. Por que? Quero morrer para virar logo anjo. Mal sabe ele que é uma espécie de anjo de asas tortas, um espírito zombador que sorri com seus dentes de peste e é divino ao mesmo tempo. Há um outro espírito em minha casa que carrega um par de olhos tristes azuis e é bondade pura. É a própria personificação do verbo doar. Eles são anjos e não sabem, porque são tortos. Um quer morrer para então tornar-se, outro tem fascínio pela morte mas odeia a idéia que o seu tão próximo morra. Aquela outra que fechou o verde das cortinas é também das divinas que aspiram pó de tatuí e bebem para deixar de ver o verde do mundo. Ainda bem que agora ela dorme, linda e nua, com aquele que quer morrer e tornar-se logo anjo ao seu lado.
Tudo é estranho, eu sei, e nessa estranheza reside a beleza do mundo. Alguns seres do universo esqueceram-se de sua divindade. Eu sou prepotente, logo estou mais próxima do inferno, o que não deixa de ser divino. Embora pense ser o Diabo menos opressor que Deus; se tantos reis perdem seus tronos, por que a onipotência não pode ser questionada? Há algo de demônio em mim. Escolho o aborto porque talvez eu nasça um anticristo. Quando eu sorrio de lado e torço o pescoço há algo de demônio em mim. Talvez eu dê a luz assim.
Há anos não encontrava um Tatuí. E, vendo aquele menino maltrapilho com olhos famintos, pude descobrir o segredo do mundo. Mas então eu quase fiquei cega, e porque me preocupei mais com a cegueira, e com a loucura, do que com o segredo do mundo, eu esqueci e não posso mais contar nada. Mas eu sei, por ínfimos segundos eu vi o perigoso segredo do mundo com os olhos dos cegos.
Faz muito calor e há muita luz, e a luz é o precipício da escuridão. Eu tive medo, mundo, tive, porque cheguei ali na beira do precipício. Pássaros com rabos de tesoura nos sobrevoavam, um ser com olhos doces escondia-se entre as serpentes e submergia no mar, outro descobria tatuís. Um moço dos magros esquálidos que comem todos os músculos carregava nos ombros uma enorme fêmea fértil, cheia de carnes, a própria deusa da cópula com as pernas apertando-lhe a cabeça. E jogavam: quem te afoga primeiro? Eu não sei como uns podem carregar tanto peso e outros serem tão leves, com tatuís na ponta dos dedos. Aí está o equilíbrio do mundo.
Isso tudo eu vi hoje, e te pergunto: como não ficar cego? Estou quase cega e bebo para apertar os olhos, e enxergar os verdes que se escondem nos cinzas das nuvens. Tenho tiques: amarro os cabelos no alto, dou nós, coço o nariz, fumo. Estou quase saindo de mim e não posso, quero chorar e não consigo. Uma lágrima me acalmaria. Mas não, eu decidi ser viva. E arregalo os olhos, tenho espasmos, bailo até aquele que me congela a dor para arrancar o último gole, raspar os glaciais. Não mais o mundo me transborda, eu me transbordo, eu sou o mundo inteiro. Não sei mais o que é meu corpo, não tenho mais estômago nem fígado. Já arranquei os tímpanos e hoje quase perdi os olhos. Tenho ainda pulmões, podres e cancerosos, e é lá onde te sinto. De repente respirei jazz e morri de saudades de ti, tu, mi porteño, donde carajo andarás que olvidaste todo lo increíble así, tan pronto? Tenho saudades de respirar-te, de sentir teus ossos, o teu cerne. O que ainda te mantém de pé?
Ainda bem, enfim, eu consegui chorar. Agora não vou mais transbordar até morrer.
Eu surto de tanto amor. Eu sei que tu não me aguentas mais, eu sei, é porque eu tenho uma espécie de amor parecida com a dos gatos. Veja os gatos: eles sobem em teu colo e te acariciam, depois te cravam as unhas para amaciar o lugar em que se deitam. Ninguém gosta, eu sei; mas eu, eu amo, amo quando os gatos me enfiam as unhas, dou-lhes minha própria cabeça para que me cravem todo o seu ser, e para mim isso é massagem pura. As pessoas se assustam, as pessoas se assustam quando acariciam um gato e de repente ele as morde. Mas entenda: isso pertence ao ser fantástico dos gatos, e o assustador de certa forma pertence ao fantástico. Eu sou um ser fabuloso como os gatos, que se move feito louca, mas não me tente entender: ame-me como eu amo os gatos que me cravam suas unhas e que me mordem.
Uma vez eu tinha um gato entre as pernas. Ele estendia o rosto para que eu lhe acariciasse o pescoço, me serpenteava, me ronronava. Era a animização do sol, com seus raios rajados, amarelos que interrompem brancas nuvens. Eu quis me levantar, quis deixá-lo, tirá-lo do conforto de minhas pernas. Ele se enfureceu e cravou suas unhas em meu maxilar, agarrou minha cabeça como quem fosse começar a devorar-me pelo cérebro – mas não fez mais nada, apenas cravou-me suas unhas no rosto e enfureceu-se. Soltei-o agarrando-o pelas patas e ele não me arranhou, ficaram-me apenas as marcas das pontas de suas unhas. Entenda os gatos e irás me entender: quando eu te cravar as unhas é porque quero que me segures as patas. E óbvio que me enfurecerei e te atacarei quando tentes expulsar-me de teu colo, por qualquer motivo que seja.
Restam-me apenas poucas horas para chorar o que perdi das minhas unhas entre tuas pernas, dos meus olhos que acendiam quando tu abrias os teus, de como nos fitávamos horas, como eu fito os gatos, horas que fitei-te para que viesses ao meu colo. Lembro-me da primeira vez que agarrei-te pelo pescoço e depois levei-te a New Orleans. Comprei-me uma serpente de plumas negras e nos envolvemos, espalhamos gotas de plumas pelos olhos que se nos passavam, dois gatos que enroscam os rabos. E pedi um Irish Coffe às três da tarde num jazz de esquina, e te filmei – você sorria com os olhos, dentes iluminados por mim que te dava tantas voltas. Embriagamo-nos e tu não te importaste. Quando foi que o inebriado do meu ser começou a te incomodar?
Levei-te do êxtase à tortura chinesa, tão típico de mim. E tenho poucas horas para trazer-te de volta. Porque amanhece e os anjos vão à escola. Minhas últimas canções, esqueceu? Eu sou o demônio com minhas serpentes que escorrem-me pelos ombros. Tenho agora só uns minutos para que me enxergues, não com os olhos últimos, os olhos do divino, mas com os primeiros, de terra, aqueles que me viram vestida de camareira, fumando, sentada sozinha, transbordando – aqueles olhos que transbordavam junto com os meus. Meus olhos de gato, os teus de leão. Quando éramos nós nada disso importava. E eu juro que tenho saudades do inferno em que vivemos. Eu prefiro. Eu prefiro ser inferno, mas eu gostaria que fosse o inferno dos gatos e do jazz.
Eu te amo de uma coisa louca e estranha, te amo da memória do amor. Memória, memória que eu nem sei mais o que é memória. Tento aniquilar minha memória e não consigo porque tu me permaneces. Sabes que talvez eu nunca tenha te amado como hoje quando estou sem ti? É o amor de um tesouro enterrado não se sabe onde, o desespero do pirata. Cavo todas as terras e só encontro tatuís mortos, nada de ti. Continuo a escavar e já amanheceu, é a hora dos anjos, eu tenho que fingir que vou dormir – sou demônio, lembra-te que eles não sobrevivem ao sol. Estou ao sol e me queimo, mas não me acontece nada.
Queria sorrir-te e morder-te as pequenas pinceladas carmim donde saem teus dentes separados, sarcásticos, que talvez sempre me zombaram. Mas não: um dia sorriste-me de verdade, eu vi em teus olhos. Eu sei. É porque me esqueço. Tu bem que poderias lembrar-me de vez em quando. Eu te amo. And no one can take that away from me. Ainda me resta algo de espírito, espírito que se senta sozinho e fuma e bebe – e que te ama, mesmo torpe assim.
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